terça-feira, 26 de outubro de 2010

Fantasmas no Sótão - Reflexão


Era apenas um jantar informal de fim de curso com uma turma acabadinha de se formar e colegas da escola onde trabalho, num restaurante de gestão brasileira onde a comida não é servida à mesa mas sim numa zona de self-service, com preço fixo que dá direito a comer até não poder mais. Não estava à espera que fosse tão informal ao ponto de dois colegas meus terem manifestações de afecto publicamente, ainda que subtis não o foram o suficiente para não serem notadas. Ao mesmo tempo sentia uma atmosfera de cumplicidade e secretismo que me era familiar, não tivesse eu tido um romance há cerca de três anos atrás, com um colega de trabalho, o qual supostamente era para se manter secreto, não fossemos ambos membros de relacionamentos de vários anos e como tal, estávamos a cometer um acto ilícito, imoral e condenável à lupa de diversas culturas e religiões, éramos duas meretrizes adúlteras condenadas às chamas do inferno, à fúria do Armagedão, à inveja implacável das funcionárias e outros colegas na altura, apesar de também eles terem esqueletos no armário. Enfim, de secreto penso que teve pouco, começou depressa como se não houvesse amanhã, durou pouco, acabou de repente mas marcou o suficiente para ganhar um lugar de destaque na estante de troféus do sótão, onde hoje permanece com aquele brilhozinho irritante que sobressai mesmo por debaixo da camada de pó que foi ganhando ao longo destes três anos.

Durante a sessão de pratos e copos, por breves instantes, a subtileza dos gestos e olhares, fizeram-me recordar momentos pelos quais passei nesse meu passado condenável e fui-me sentindo um pouco agitada, incomodada até, irritada para ser mais precisa e ao mesmo tempo profundamente triste e arrependida das hipóteses que deixei escapar porque o medo de tentar e falhar me levaram a ficar quieta, refugiada no meu canto, todos estes anos.

A caminho de casa senti-me aturdida por uma carga emocional que chegou a superar o meu lado mais racional - o que podia ser até perigoso porque ia a conduzir sozinha e à noite com o álcool de dois copos de sangria a correr-me pelas veias - reacendendo-se a frustração e a dor de ter perdido algo no tempo e no espaço e não ter feito absolutamente nada por algo que hoje podia existir, hoje ele continuaria a ser o tal se eu tivesse feito as coisas da forma correcta, se tivesse sido correcta com o outro membro do relacionamento legítimo que tinha, se tivesse ouvido os meus sentimentos, se isto e se aquilo, uma família de “ses” unidos que não servem para nada a não ser fazer-me entrar em desespero e mais e mais frustração.

Nessa noite senti-me perdida, uma fraude, faltava pouco tempo para completar um ano de namoro com o meu então namorado e novamente não conseguia seguir para a frente com a minha vida por ser constantemente visitada por este fantasma inoportuno e sádico que me tirava o sono e me deixava os olhos vermelhos e inchados de chorar, qual Madalena arrependida.

Dias mais tarde, a muito custo para ambos, tendo sido ele confrontado com a situação que não era inédita, vendo novamente a minha angústia e confusão e sendo uma pessoa altruísta, embora eu não estivesse à espera, deu-me a hipótese de ir atrás do passado e analisar com olhos de ver as reais capacidades que esse fantasma teria de ganhar forma carnal e existir no meu presente. Eu estava à vontade para remexer no passado e trazê-lo de volta ou enterrá-lo de vez.

Tinha de o fazer, por mim, por ele enquanto pessoa mais lesada com a situação, pelo passado que tantas vezes tentei exorcizar sem sucesso, pelo meu futuro, pela minha felicidade e pela minha estabilidade e saúde mental.


Fantasmas no Sótão - Introdução

Quando era criança não tinha medo do Papão, nem do Velho do Saco nem de Fantasmas. O Gato das Botas era mais forte que eles todos juntos e enfiava-os a todos num saco de farinha para atrair perdizes. Os adultos é que crêem em fantasmas e têm a cabeça cheia de bichos cabeludos que metem medo ao susto, daí que a minha avó paterna tentasse em vão meter-me medo. As crianças estão imunes a isso, como gostava de voltar a ser criança. Inevitavelmente passei do estado larval a adulto e ao contrário de há vários anos atrás tenho muito medo de fantasmas, sobretudo aqueles que vivem dentro do sótão que há na minha cabeça. Aí tenho fantasmas e bichos cabeludos e se procurar bem, devo ter um baú cheio de recordações que só ocupam espaço e fazem lixo, não servem para nada nem sequer são bonitas para enfeitar.